15 de ago. de 2011

A arte da invisibilidade


Sempre suspeitei do treinamento ninja de Karmem. Embora ela jamais tenha me confidenciado, apenas um longo período entre especialistas explicaria algumas de suas habilidades.
Como por exemplo a capacidade de ficar invisível. Karmem desaparecia sorrateiramente como uma sombra. Claro, no caso, parar de falar aos quatro ventos já poderia ser considerado silêncio.
Bastava Karmem sair de meu campo de visão para procurar, sorrateira e silenciosa, por um esconderijo. Ou escavar um na terra batida, usando uma pazinha de sorvete, por exemplo.
- Eu queria cinco esfirras de carne, mais quatro de queijo, dois quibes e duas Cocas.
- Nossa, o senhor está faminto, hein?
- Não é só para mim, minha namorada aqui atrás vai comer também.
- Namorada?
Olhei para trás na fila do fast-food e vi apenas uma senhora de óculos de aro de tartaruga tentando ler o cardápio.
Onde estava Karmem?
- Você não viu uma garota atrás de mim, aqui na fila?
- Não, mas agora já re'z'istrei o pedido. O senhor tem que pagar.
Mantive a expressão serena. Não era o primeiro (nem o último) sumiço de Karmem.
Ela certamente devia estar atrás de alguma pilastra. Ou de alguém mais gordinho. Ou atrás de mim!
Já havia encontrado Karmem refugiada em armários (da cozinha), debaixo de móveis, dentro da cozinha de restaurantes e em salas de cirurgia (com operações em andamento). Nenhum lugar naquele shopping seria surpresa.
Por isso peguei o pedido e fui calmamente para a mesa. Comecei a comer, quando vi Karmem se esgueirando para fora da lata do lixo, com alguns canudinhos presos no cabelo.
O alívio durou apenas o tempo de vê-la correndo embora da praça de alimentação.
Como em todas as suas esquisitices, calculei que seria preferencial não questionar.
Para não estimular. Menos de dez minutos depois, ouvi pelo sistema de som do estabelecimento:
- Atenção, senhores visitantes. Encontra-se na sala de atendimento ao cliente uma moça, aparentando ter seus vinte e poucos anos, cheirando a lixo e balbuciando sons sem sentido ou alguma língua do oriente que não conseguimos entender. Pedimos a gentileza de que seus acompanhantes venham retirá-la para que possamos dar continuidade aos nossos serviços.
Podia ser outra pessoa, né? Não dei bola, até que a voz voltou.
- Apenas para deixar registrado, ela já chegou aqui com os canudos enroscados em seus cabelos,não fomos nós que os colocamos. Senhorita, não, o microfone é de uso exclusivo dos funcionários do shopping. Senhorita, não pode falar aí!
- Eu ão aeio e oê oi eoa! ao eu e aa, ou eia oo ee auo o oo o eu ao!
Karmem não usava as consoantes em situações de fúria. Ou de sono. Ou de fome.
Reagi como qualquer namorado carinhoso que conhecesse sua garota poderia ter feito: comi todos os salgados. E bebi as Cocas. Finalmente, fui até a sala de atendimento, onde Karmem chorava sentada em um banco. Aparentemente, tudo estava normal. No normal dela, claro!
- eu uo, e oaão! oi eoa e e aou ai, a ieira!
- Karmem, por favor, com as consoantes...
- Seu bruto, sem coração! Foi embora e me largou ali, na lixeira!
- Mas eu estava ali, comendo! Você não viu?
- Aquele gordo se empanturrando de quibes era você?
- Sim, o gordo era eu. Quer dizer, sim, era eu.
- E como eu ia saber? Estava olhando de longe! Você devia ter acenado!
- Olha, vamos embora? O metrô já esta quase fechando...
Pelo menos, eu teria algum tempo até Karmem resolver fazer a brincadeira do desaparecimento de novo.
Como o tempo de eu chegar na bilheteria, pedir as passagens do metrô e virar para entregar a dela.
- Aqui está, Kar... Karmem? KAAARRRMEEEEM!

30 de mar. de 2011

A colecionadora de enfermidades

Ricardo acordou e olhou pro lado, tentando identificar onde estava. Viu a própria cama e tentou recobrar o momento em que havia caído para o chão.

‘Lúcia’, pensou.

Não é que Lúcia o jogasse para fora da cama. Acontece que ela tinha o poder de fazer ser impossível dormir ao seu lado. A bem da verdade, ela tentava a todo custo livrar-se de qualquer contaminação. Passava a noite dando joelhadas nas costas de Ricardo, até que ele não aguentasse mais e saísse por conta própria.

Colecionadora de doenças, acreditava que qualquer contato físico era carregado de germes e bactérias. Com 23 anos, o plano de saúde cobrava o equivalente à terceira idade (ou quase quarta), dado o número de exames e consultas distribuídos ao longo do mês. Por perfil de uso, Lúcia havia sido rotulada internamente como “semi-moribunda”.

- Você entende, né?

Dizia ela, sempre que sugeria Ricardo dormir no chão. Ou no outro quarto. Ou em outro domicílio. Ou em outra cidade.

Lúcia considerava o aperto de mãos o contato mais íntimo que duas pessoas deveriam manter. E, ainda assim, rápido.

Curiosamente, foi o interesse científico que atraiu Ricardo. Prestes a concluir a faculdade de medicina, o rapaz se impressionou com o conhecimento científico da garota.

- Doença de chagas?

- Sim.

- Isso não está assim, meio que erradicado?

- Estou com todos os sintomas. Pode ter certeza! Me expus a um inseto barbeiro fazendo aquela viagem...

- Mas você ficou hospedada em um barraco de pau a pique?

- Não, mas o quarto do hotel tinha detalhes em madeira. Nunca se sabe...

Como forma de inviabilizar qualquer outro contágio, o sexo era igualmente evitado.

- Ai, hoje não, que eu acho que tô com febre.

- Estou medindo com o termômetro e sua temperatura está normal.

- Seu tarado! Querendo se aproveitar de mim durante minha enfermidade! Onde já se viu?

Nas poucas vezes em que acontecia, não raro era interrompido para anunciar as instruções anti-contágio.

- Vira isso para lá, que não quero nada escorrendo em mim. Ai, você tá suando muito! Continua, mas sem se mexer muito, vai. E nem pensa em ligar esse ar condicionado, porque eu não tô boa pra tomar friagem!

Levou algumas semanas até Lúcia decretar:

- Pois sexo, agora, só no chuveiro! A gente vai fazendo e já vai lavando na hora, muito mais higiênico. Aliás, ‘higiênico’.

Além do preservativo, Lúcia exigia total e completa assepsia, incluindo desinfecção com água sanitária em todas as partes do corpo, utilizadas ou não durante o ato.

- Fluídos são repugnantes!

Ricardo deveria ter desconfiado na primeira vez, quando a moça vomitou depois de ter atingido o orgasmo. Mas preferiu dar a chance. Como sempre, achou exótico. Achou peculiar. Considerou um charme. Aguentou firme e forte por vários meses, quando, sem mais suportar a pressão dos próprios hormônios, passou a recorrer às profissionais.

Pagava àquelas mulheres para ter o prazer de ter contato físico sem amarras (e com os fluídos escorrendo pelo corpo sem preocupação).

Não, ele não queria se separar. O fato é que Lúcia era uma fonte rica de informações, pois sempre estava antenada com tudo de mais moderno no tratamento das mais diferentes condições de saúde (incluindo doenças raras).

Uma manhã, porém, se descuidou. Gastou com as raparigas todos os seus preservativos. Escolhia o sábado pela manhã para suas aventuras pois sabia que Lúcia estaria dormindo e jamais requisitava sua presença antes do meio-dia, quando, segundo ela, se podia ter algum contato decente com uma pessoa, sem a intimidade de vê-la despertando.

Naquela noite, quando tentava aproveitar o que ainda sobrava do desejo provocado pela manhã de luxúria, deu-se conta de que não havia proteção na sua mochila.

- Ué, o que aconteceu com as camisinhas?

Quis saber Lúcia.

- Joguei todas fora.

Arriscou.

- Você não está pensando em fazer sexo comigo sem, né? Só se você esterilizar isso aí com água fervendo, por dentro e por fora!

- Não é isso. Acho essa coisa de expelir sêmen muito asqueroso. Decidi que não quero mais nenhum contato sexual.

Lúcia chorou. Estava finalmente diante de um homem que a compreendia. Marcaram casamento para dali a seis meses e levaram uma tia idosa e sua dama de companhia na lua de mel. Para terem alguém com quem conversar durante a viagem e completar o número de jogadores na mesa de baralho.

30 de set. de 2010

Objetividade

Fazer Comunicação Corporativa é o mesmo que ser garçom em um restaurante no qual o cliente senta à mesa e diz:

_ Quero um almoço.

Mas não diz qual é o prato. Quando muito, acrescenta:

_ E rápido, porque estou com bastante fome.

Você traz o primeiro, o cliente olha e, pelo aspecto, antes de provar, informa que não era bem aquele que ele esperava.

_ E o senhor consegue dar uma idéia mais ou menos do que eu poderia servir, se é salgado, doce, apimentado, com ou sem condimentos?

_ Então, pode ser alguma coisa parecida com o que os outros estão comendo, eles parecem satisfeitos.

Aí, esse garçom olha para os lados e vê que cada um tem à sua frente uma refeição diferente e pensa em quantos alimentos e combinações e modos de preparo existem.

Resultado: você até vê garçons de idade avançada, mas e assessores de imprensa? Quantos você conhece com mais de 40 anos?

Depois de tanto servir o prato "errado" (embora não exista o que pode ser considerado "certo") o dono do restaurante oferece a cabeça do garçom na bandeja.

1 de jun. de 2010

Enchente voluntária (Ambiente adequado 2)

Karmem não se incomodava de prosseguir fora da trilha, pelo meio do rio.

- A água está na nossa canela. Que refrescante! O rio bate no nosso pezinho e ouvimos um chuá, chuá. Quer som mais relaxante que esse?

Logo o chuá, chuá havia se tornado um ensurdecedor tchuááááááááá.

O que significava, claro, que o nível fluvial já alcançava a cintura.

- Karmem, estou ficando com os ovos gelados.

- Você trouxe ovo também na mochila?

- Esse tipo de ovo, não, os meus 'ovos'!

- Hihihi.

Para tornar tudo mais fácil, a força das águas ficava cada vez mais intensa conforme avançávamos. Íamos contra o sentido da água, para chegar à sua fonte, pisando nas pedras que, além do limo, eram lixadas constantemente pelo rio. Uma trilha, assim, super fácil, já que decidimos abandonar o caminho por entre as
árvores.

- Karmem, não sei se consigo andar mais...

- Como você é mole. Faz quanto tempo que estamos andando, uns quarenta minutos?

- Deixa eu olhar no relógio... Acabamos de completar treze horas.

- Como o tempo passa quando estamos nos divertindo à beça, não é mesmo?

A maior diversão era ver que, pelo menos, se eu estava "aguarrado" (soterrado por água) até o peito, Karmem, 20 centímetros mais baixa, estava submersa do queixo para baixo. Pensei que isso fosse o suficiente para que ela desistisse, mas Karmem não era dessas. Chegaríamos à cachoeira, nem que tivéssemos que usar bambus para respirar!

E assim foi. Chegamos sãos (?) e salvos (?) à queda d'água.

- Não é a melhor visão do mundo?

- Não sei.

- Como, não sabe?

- São onze horas da noite, não estou enxergando nada.

- Quanto negativismo. Só você para ignorar que está no mais perfeito paraíso.

- Olha, só estou preocupado em imaginar como é que vamos voltar daqui...

- Cadê a corda?

- Que corda?

- A que eu coloquei na mochila.

- Aquele pedaço de elástico?

- Esse mesmo!

- Eu achei que fosse só para amarrar a mochila porque o zíper emperrou e não fecha mais.

- E a sua criatividade inventorística, onde vai parar nessas horas?

Sem entender onde ela queria chegar, entreguei o elástico.

- Pronto, agora você sobe lá, prende uma das pontas e me joga a outra. Rapel é tão divertido!

- Subo onde?

- Onde mais? Na cachoeira!

- E você quer que eu suba como? Tem elevador?

- Quanto corpo mole. Sobe ali pelas pedras, vai!

E lá ia eu, subindo pelas pedras dentro da cachoeira. De onde vinham as forças, não em perguntem. Só sei que em breve elas me abandonaram.

- Kaaaaarmem!!!!!!!

- Ai, não acredito que você não conseguiu se segurar!

Pelo menos, a viagem de volta levou muito menos tempo. Arrastado pelo rio, voltei ao ponto de partida em quarenta minutos, exatamente o tempo que Karmem sentira passar na viagem de ida. Tempo suficiente, também, para que Karmem aparecesse do meu lado. De carro.

- E não é que você tinha razão?

- Gasp, puff, puff, ãh?

- Instalaram um elevador mecânico na cachoeira, para facilitar o acesso dos turistas. FIcava do outro lado, eu só tive que dar a volta para encontrá-lo e subir tudo.

O pessoal do hotel fazia viagens gratuitas até ali de carro. Quando Karmem contou que eu tinha sido arrastado, o guia de turismo de plantão foi com ela me socorrer. Só não entendiam porque alguns turistas insistiam em aventurar-se pelas águas perigosas, lamacentas e a correnteza forte para chegar a um lugar que se podia alcançar em 15 minutos de carro pela estrada.

25 de fev. de 2010

Abominável homem da espuma

Karmem sempre fazia com que eu me sentisse bem em relação à minha aparência:

- Seu cabelo é ridículo.

- Quanto?

- Muito. Vai lá passar esse gel agora.

- Mas eu gosto dele assim, do jeito que est...

- A-G-O-R-A!

Uma semana de namoro e era assim que trocávamos confidências amorosas no banquinho da faculdade.

- Usa ali a água do bebedouro, para baixar um pouco essa juba.

- Não é melhor eu fazer isso na pia do banheiro?

- Não! Eu quero ter certeza de que você vai fazer o processo do jeito certo, e que não vai gastar todo o meu gel.

Karmem sempre confiou em mim.

- Deixa eu mesma passar.

- Ai, não puxa!

- É que está muito alto. Você não podia ter a cabeça mais pra baixo?

- Se você continuar puxando, ela vai ficar...

- Espera aí, tem algo estranho.

- Fora o fato de você estar molhando o meu cabelo no meio do campus?

- Que frasco é esse?

- O que você me deu.

- Xi, me confundi!

- Confundiu o quê?

- Isso não é gel, é sabonete líquido.

- E isso escorrendo nas minhas costas é o quê?

- Faça as contas. Sabonete + água é igual a...?

- Hummmm... Espuma?

Karmem sabia como lidar com as mais variadas situações e sempre nos livrar dela. Geralmente com a mesma solução: rir enquanto eu corria para dar um jeito em tudo.

- Tá parecendo o abominável homem das neves agora!

- E você vai ficar só rindo?

- Não, vou fotografar para todo mundo ver depois. Essa eu não posso perder.

- Posso lavar no banheiro?

- Ainda não.

- E por quê?

- Por que nenhum amigo meu já passou aqui para ver. Ah, péra! Professor, olha só o garoto que eu namoro! Pode uma coisa dessas?

- Mas o que está acontecendo aqui?

Fiz o que qualquer pessoa normal faria. Corri gritando:

- Foi essa louca que me encheu de sabão na cabeça!

Via-se uma auréola na cabeça de Karmem.

- O senhor acredita? E ainda quer colocar a culpa em mim! Esse menino sempre tenta denegrir a minha imagem...

Mas tudo compensava. As risadas de Karmem ainda ecoariam por muito tempo em meus ouvidos.

16 de nov. de 2009

Censurado - Aracy e a ameaça do vírus

Caros leitores,

Como alguns de vocês estavam sabendo, eu iria colaborar com uma revista focada no público jovem. 'Iria' mesmo e não vou mais e explico o porquê.

Texto pronto, diagramado no 'boneco' (espécie de modelo pré-impressão feito para ver como vai ficar a revista final), a idealizadora da publicação mostrou para um anunciante que considerou o tema pesado para o público-alvo.

Decerto este anunciante acredita que ignorando os problemas do mundo eles passam automaticamente a não mais existir. Na minha opinião é justamente o contrário: quanto mais informação se tiver sobre aquele assunto, mais fácil ficará combatê-lo. Mas quem sou eu?

Desconheço qual seja a marca ou mesmo o produto desta empresa, mas não me surpreenderia nada saber que a própria deve investir milhares de reais em marketing social - tudo em nome de construir uma imagem politicamente correta e nada mais.

Triste saber que ainda existe, sim, muita censura no mundo. Mais triste ainda saber que esse veto não aconteceu por motivos políticos, religiosos ou morais e sim para não macular o lindo mundo perfeito que a publicidade quer nos fazer acreditar que passaremos a habitar ao comprar seus produtos. Como se adquirir uma margarina, um sapato, um carro ou um par de óculos escuros da moda nos tornasse imortais e imunes a quaisquer mazelas.

Como este blog tem compromisso única e exclusivamente com os seus leitores (até porque não temos patrocínio), segue o texto abaixo. Espero que gostem e, acima de tudo, que entendam a mensagem.

Aracy e a ameaça do vírus

Aracy chegou já em prantos.

- Ai, Cris! Estou com um problema horrível.

- O que foi, gata? Você estava tão aflita ao telefone que eu mal tive tempo de dispensar o Charles para vir te ver. E que história é essa dele não poder vir junto?

- Vou ser direta: estou com medo de estar com HIV.

- Aracy, o que a senhora andou fazendo? Ou melhor, o que a senhora ficou parada fazendo, com quem e em que lugar?

- Lembra daquela viagem que eu fiz no final do ano passado?

- Sim, aquela que você acabou ficando com o amigo da irmã do vizinho da sua prima?

- Irmão da amiga da vizinha do meu primo.

- Isso.

- Descobrimos que o rapaz está com o vírus.

- Ai, ai, ai. Mas foi só uma ficada, não foi?

- Sim, foi.

- Então, tudo bem. Essas coisas não se transmitem no beijo.

- E quem disse que foi só beijo?

- Não foi só uma ficada, criatura?

- Sim, então. Ficar vai um pouco além do beijo.

- Ai, então me atualiza que eu fui adolescente lá nos anos 90, quando ficar era só beijo.

- O meu ficar é um pouco mais, digamos, abrangente.

- Ai, sua louca. E você não usou proteção?

- É claro que eu usei proteção. Vai que eu engravido, né?

- Então, para quê ficar tão encanada?

- Digamos que eu não tenho óvulos na garganta.

- Mas ele chegou a...

- Eca! Não, claro que não. E vai dizer que você usa camisinha para isso?

- Preservativos saborizados com tecnologia de ponta, meu amor. Já chupei com sabor
de morango, damasco, lima-limão, abacate, carne-seca, curry, ricota... Se bem que esse último eu acho que foi sem proteção mesmo.

- Dá para parar de falar besteira enquanto eu estou com um problema desses?

- Querida, eu já sei o que você precisa. Está com o bilhete de metrô aí?

- Sim. Você acha que já é motivo para eu me atirar na frente dele?

- Não, mas se você não parar de paranoia eu te jogo. O que você precisa é informação. Vem comigo.

Cris pacientemente conduziu a amiga a um Centro de Testagem e Aconselhamento (www.aids.gov.br/fiquesabendo). Aracy tinha a certeza de que todos a olhavam para com compaixão por ser uma portadora do vírus e logo foi conduzida para o atendimento.

- Pode me contar, doutora. Estou preparada. Fui infectada?

- Isso só saberemos depois do teste. Fica pronto em vinte minutos.

- Rápido assim?

- Sim, com a tecnologia de hoje é possível detectar a infecção por HIV muito rápido e
usamos os testes de dois laboratórios, para ter certeza. Vai ser só uma picadinha.

- Ui!

- Calma. Agora, me diga, por que você está aqui hoje?

- Então, doutora, eu 'mantive contato', a senhora entende, foi assim, uma vez só, mas eu cheguei a colocar a boca e aí, ferrou tudo de vez, porque isso é grave, né, é possível a gente pegar só de encostar naquele líquido que sai...

- Pode parar. Quando foi isso?

- Já tem oito meses.

- Ótimo. A janela para o teste dar errado hoje é de no máximo seis meses, mas a esmagadora maioria dos casos positivos são detectados em dois meses.

- Ai, que angústia!

- E como você sabe que o rapaz em questão está infectado? Ele mostrou o teste para você?

- Não, eu nem tenho mais contato com ele. Mas a gente ouviu dizer que ele tem perdido muito peso ultimamente.

- E em vez de achar que ele está de dieta essa turma da fofoca paralela preferiu sentenciar que ele está com HIV.

- Exato. Nossa, a senhora é boa mesmo.

- Saiba que hoje os portadores do vírus têm uma qualidade de vida tão boa que nem é mais possível identificá-los. Os sintomas demoram anos, às vezes até décadas para aparecer.

- Isso é para me acalmar ou me alarmar?

- Isso é para você aprender duas coisas: é muito importante a precaução em todas as modalidades de sexo e não podemos julgar ninguém pela aparência, seja qual for. Ah, que bom, já deu o tempo, olha aqui o seu resultado: negativíssimo em ambos os testes.

- Doutora, que bom que eu vim aqui! Ia gastar uma nota com o teste em um laboratório.

- Que iria demorar pelo menos três dias úteis e não daria esse aconselhamento psicológico, totalmente necessário em testes de HIV.

- Muito obrigado, viu, Dra. Elisa!

- Só estou fazendo o meu trabalho. E, apenas para constar, meu nome é Rosana. Elisa é o nome do teste.

Na saída, mais aliviada, Aracy abraçou Cris, agradecendo pelo suporte.

- Obrigado! Como você sabia desse lugar?

- O Charles me trouxe aqui quando começamos a namorar.

- Ai, que esquisito. Chamar para fazer teste de AIDS deve acabar com o romance.

- Eu achei muito estranho na hora, mas hoje acho que foi a coisa mais romântica que fizemos juntos. Sabe, assim ficamos ambos tranquilos. Parceria é isso, né?

- Sim, Cris. Parceria é poder confiar algo tão sério assim com alguém. Obrigada pela amizade!

- De nada. Mas, só para garantir, enquanto você se aconselhava eu dei um pulo ali na farmácia e comprei estes presentes.

- Ai, camisinhas de caramelo, maçã-verde e marrom-glacê? Só você para achar um troço desses!

- As de avelã com coco são minhas, tá, que ninguém me obriga a compartilhar!

23 de jul. de 2009

Teste de paciência

Karmem chegou com uma revista.

- Olha só, aqui tem um teste de personalidade que a minha chefe disse que é batata!

Pensei em perguntar se o teste ficava bom esmagado com creme de leite, ou se daria para assá-lo e recheá-lo com requeijão e bacon, mas preferi apenas concordar com a cabeça.

- Eu vou pedir algumas palavras e você me diz a primeira que vier na sua cabeça. Combinado?

As maiores discussões com Karmem geralmente apareciam depois de termos combinado qualquer coisa.

- Diga uma letra.

- Ah?

- Isso. Agora, me diga uma palavra de quatro letras.

- Três?

- Não, três não, quatro. Quatro letras.

- Então, a palavra “três” tem quatro letras.

Karmem escreveu a palavra no canto da página da revista, como tinha feito com o “A” da primeira pergunta e contou quantas letras tinha.

- Certo. Agora, uma de cinco.

- Cinco.

- Isso, de cinco letras.

- Então, “cinco”.

- Cinco? Essa é a sua palavra?

- Ué, cinco tem cinco letras. Será que é por isso que se chama cinco?

- Não sei, só sei que isso está muito esquisito. Diga agora uma palavra de seis letras.

- Quatro.

- Como, quatro? O teste pede uma de seis letras!

- Então, a palavra “quatro” tem seis letras...

- Você está tentando me irritar? Por que, se estiver, está conseguindo. Fala uma palavra de duas letras.

- Um.

- Uma de três letras.

- Uma.

Karmem suspirou tão fundo que uma frente fria da Argentina que estava na cidade subitamente desapareceu antes de me fazer a pergunta fatal, a que eu nunca soube responder, embora ela quisesse a resposta mais genial de minha parte:

- O que você está querendo me dizer?

- As primeiras palavras que vieram na minha cabeça, como você pediu. O que foi que você colocou quando fez o teste?

- Para qual item?

- O de uma letra.

- E.

- E o de duas letras?

- Eu.

- Sim, você. O que colocou na parte que pede uma palavra de duas...

- Então, eu coloquei “eu”.

- E na de três?

- Bom, primeiro eu coloquei “meu”, depois, troquei para “mim”.

- E na de quatro?

- “Tudo”. Aí voltei na pergunta de três letras e troquei de volta para “meu”.

- E na de cinco?

- Minha...

Fiquei até com medo de perguntar, mas fui em frente.

- E na de seis?

- Minhas... Mas você nem me deixou fazer a última pergunta.

- E qual é?

- Você tem que montar uma frase com a maioria das palavras que utilizou...

- Cinco, quatro, três, dois, um!

- Essa é a sua frase?

- Sim. Por quê, tinha que ser uma oração, com sujeito e predicado?

- Não sei, aqui na revista só pede uma frase. Mas é que agora eu ia dizer que as palavras não importam tanto, e sim a frase que você forma.

- Poxa, então, pela minha frase, acho que eu tenho aptidões para trabalhar na Nasa, não acha?

- Exatamente. Acho que você tem aptidão para sair desse planeta, isso sim.

- E que frase você formou no seu teste?

- “É tudo meu”...